Os cores em Criancas Negras (Cruz E Sousa)
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Os 76 versos de Crianças Negras foram publicadas em Poemas dispersos, mas também, curiosamente, em Poemas humorísticos. Eu não tinha encontrado nenhum humor nestes versos de desesperado chamado a liberação das crianças negras do suplicio da miséria . O poema, porém, não é um poema de luta política, senão um arte poética da elevação do homem sobre a miséria do mundo em geral, e da escravidão em particular.

O personagem principal do poema é o coração que mora em cada verso e que voa ao céu por meio dos pássaros azuis das rimas. A função do coração cambia ao longe do poema. Nos primeiros 28 versos, o coração se dirige a “cantar as épicas, frementes / Tragedias colossais da Natureza” ( vs . 27-8). Do verso 29 ao verso 52, o coração canta a angustia “Das crianças vergônteas dos escravos”. Do verso 53 até o final, no verso 76, a voz lírica chama pede ao coração que arranque as crianças negras do “presídio da miséria” ( v. 75). As sequencias são então, o canto do coração às tragedias da natureza, à angustia das crianças dos escravos, o chamado ao coração para a liberação das crianças.

Na primeira sequencia há cinco cores em “pássaros azuis” ( v. 3), “ondas glaucas” ( v. 6), “ fulvos leões” ( v. 9), “sol sangrento” ( v. 11) e “cânticos sombrios” ( v. 15). O cor azul, como já vimos, é o símbolo do arte e a imaginação; o cor glauco, o verde marino, por ser parte do mar e pela referencia a “amplidão” pode ser um símbolo místico. Vejamos em outro poema:

Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas
(O botão de rosa. Dispersas - Musas. Vs. 15-22)

O cor verde, associado com o mar, refere às imensidades do arcano místico que rodeia à natureza vegetal. Nesse sentido, “verde” e “verde-mar” são diferentes. A primeira cor pode ser usado para a descrição visual da natureza, mas o segundo sempre está associado ao Mistério místico na natureza.

O cor “fulvo” ou “amarelo-tostado; alourado” representa à luz solar, como em Emparedado, onde o sol é comparado com um “Rajá”:

O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e rendilhara d'alto e de leve as nuvens da delicadeza arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos (Emparedado)

Mas, no poema que comentamos, também se associa com a majestade do pensamento na soberana rocha, pois o cor “ amarelo-tostado ” é em geral, o cor da majestade: “ Fulvos leões do altivo pensamento / Galgando da era a soberana rocha,” ( vs . 9-10). O sol do poema, porém, não está em estado puro, senão que parece um cardo em fogo e tem, portanto, cor de sangue: o amarelo-louro é como o sol-sangrento ( vs . 11-2). O cor vermelho da sangue no sol destes versos não é a luxúria que vimos em Roma Pagã, senão um anuncio do conflito terrível na Natureza do poema: um sol vivo e terrível pela sangue vermelha nele.

O panteísmo queda estabelecido também pela “canção de cristal dos grandes rios”. Os rios cantam uma canção sem cor, transparente, e nesse sentido, espiritual, no entanto a terra canta cânticos “sombrios”, escuros e, poderíamos dizer, negros. A transparência espiritual se contrapõe à escuridão terrestre assim como o transparente ao opaco. As duas dimensões carecem de cores por diferentes razões: por um lado, o espírito não e material e por isso carece de cor e é transparente; por outro, os cânticos sombrios revelam um estado de ânimo negativo na terra.

Nos versos 17 a 19, a voz poética revela a relação entre o poema e os cores. O poema é a “cadeia / De serenas estrofes triunfantes” com que o poeta quer apressar todos os objectos mencionados antes, todos os cores do universo, o verde-mar, o amarelo-tostado , o vermelho-sangue, a ausência de cor na canção de cristal e a opacidade na canção sombria. Todos estes cores tem uma função dupla: servem para descrever o mundo e servem para estabelecer uma relação com o mundo transcendente das formas espirituais. O mundo, ademais, deve ser apressado no poema pelo coração que mora nele. Assim, o poema canta “as épicas, frementes / Tragédias colossais da Natureza” (vs. 27-8).

Na segunda sequencia, imediatamente depois de falar das tragedias da Natureza, o poema cambia o desenvolvimento do seu tópico e fala das angustias das crianças. As épicas trágicas e frementes da Natureza, ao fim da sequencia anterior, tem o propósito de cantar a angústia das crianças que vem “da negra noite” ( v. 33) sem esperanças, do leite treva e escuro, do açoite dantesco, da caída de Eva da graça divina, da vergonha dos escravos, do desamparo, do caos e do pranto. A situação das crianças faz palpitar a harpa ( v. 44), que é uma metáfora do coração. Este é “harpa das emoções”, “bronze feito carne”, “supremo centro das paixões” e quando soa, equilibra riso e pranto e da encanto ( vvs . 49-52). O poeta sente o dor das crianças negras e o poema vibra e equilibra o dor com riso, a alegria da vida. Nesta sequencia a estética de Cruz e Sousa mostra-se relacionada com os problemas humanos, com o dor da escravidão, e não como o “cisne” na sua “torre do marfim”. Ainda mais, o poema tem o poder de cambiar o mundo ao estabelecer um novo equilíbrio entre o prazer e o dor.

Na ultima sequencia a voz poética se endereça ao coração e descreve suas acções: o coração descende das estrelas, cheio de piedade para proteger às crianças com a “púrpura do amor”. As crianças são chamadas “tenebrosas flores” ( v. 63) e “tórridas urzes”, o que significa que a escuridão das trevas e o cor morado das urzes identificam às crianças negras com a Natureza. Assim, o amor-púrpura protege às crianças-negras-moradas-tenebrosas . Os meninos, carentes do amor, sofrem e são consolados pelo amor maternal do coração. No verso 75, a voz poética não só se endereça ao coração, mas também pede lhe que libere aos garotos, à “falange cor de luto” e que mate-lhes a sede com a sua sangue-vermelha .

Algumas observações: primeiro, que o cor vermelho neste poema está associado com o amor do coração e com o alimento para as crianças. também com o conflito na Natureza e com a sensualidade. Segundo, que o cor negro está associado com as crianças, e elas são “vermes da matéria” ( v. 73); com o dor do luto e a escuridão das trevas. Terceiro, a voz poética que pede ao coração do poema que alimente aos meninos é o símbolo da função do arte: a poesia pode transformar o mundo porque pode liberar e alimentar aos que sofrem. Quarto, o cor azul tem o mesmo significado que tínhamos visto quando falamos da flor azul. Quinto, o cor verde-mar refere ao mistério da Natureza. Sexto, o cor amarelo-tostado , ou alourado, é a luz solar e o cor da majestade. O transparente pertence a espiritualidade e a opacidade a materialidade. Estes cores descrevem o mundo e estabelecem relações com o mundo espiritual. A estética do poema não esquece os problemas humanos. A raça e o dor da escravidão mostram que Cruz e Sousa não ficava numa “torre do marfim”. Ainda mais, O mundo, para ele, deve ser apressado pelo coração dum poema que pode cambiar o mundo equilibrando o prazer e o dor.

Até agora, tinhamos visto os simbolismos dos cores desde um ponto de vista ocidental, porém é possível que tinhamos procurado resposta no lugar equivocado:

E o que aqui aparece como fato é isto: na obra de CS verificar-se uma emergência de formas culturais arcaicas, que manifestam grande semelhança com fenômenos de origem diversa. Tentando abrir caminho no meio literario do fim do século XIX, mas mal se afeiçoando aos postulados da estética dominante (“o temperamento entortava para o lado de África”), CS descobre no simbolismo os meios expressivos que possibilitavam a concretização de uma síntese transcultural.(Ribeiro 77).

Ribeiro afirma que a simbologia de Cruz e Sousa tem raízes na religião africana e na tradição ocidental, mais no seu extraordinário artigo, ele não trabalha as possíveis raízes africanas dos usos dos cores na poesia do poeta brasileiro.

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